junho 29, 2013

Los Olvidados Buñuel

Uma dessas pérolas do século passado será com certeza Los Olvidados de Buñuel. Não terá sido apenas pela tentativa de acompanhar o neo-realismo italiano dos anos 40, mas sim, e para além disso, por trazer para o cinema uma visão mais provocante e sombria sobre a desumanização provocada pela pobreza através das maldades perpetradas pelas crianças, que mais não são do que vitimas da miséria que lhes abraça e, no fundo, reflexo da dureza do mundo adulto. A capacidade provocatória da confrontação intima desse mundo pobre sob o espectador é logo dada no início do filme com o close-up de um menino de cabelo e rosto sujos que bufa feito um touro para a câmara, ou quando Pedro atira um ovo directamente para a câmara.
Então paralelamente à questão sociológica, Los Olvidados apresenta-se também como uma extensão da estética surrealista de Buñuel, que encorpa o uso da psicologia freudiana, o uso simbólico dos animais e o uso assombroso da câmara lenta que tem o seu momento maior na sequência do sonho do menino, o que me leva a acreditar o quão brilhante, em termos dessa estética surrealista, poderia ser este filme se Buñuel tivesse integrado todas as sequências que supostamente fez e que por razões de produção não terão sido integradas.

junho 21, 2013

A procura pelo homem morto


Pese embora vivamos tempos em que a criatividade parece estar refém do puro imediatismo dos fenómenos virais ou que um maior profissionalismo do trabalho do génio dependa cada vez mais do lobby que se faça junto das elites da cultura, é um facto que a arte, enquanto manifestação livre da intelectualidade do homem, é o único instrumento capaz de se impor ao mundo e contrariar aquilo que é dado como estabelecido. Foi isso que aconteceu com a revolução cultural dos Estados Unidos nos anos 60 e foi fundamentalmente através da música que se deu uma alteração na forma como se via o mundo das ideias, facto que viria a influenciar as futuras gerações.
Essa ideia da arte como poder único de transformação de uma sociedade está presente na forma como a música de Sixto Rodriguez teve impacto na África do Sul e este caso em particular tem contornos muito especiais. Aconteceu que, sem qualquer tipo de intervenção do criador, que limitou-se a fazer o seu trabalho sem esperar retorno, ainda para mais de um sitio do outro lado do mundo, os sul-africanos da Cidade do Cabo, motivados por circunstancias politicas e sociais adversas, adoptaram-no como seu herói sem o conhecer, tendo apenas uma imagem de capa de álbum de Rodriguez feito profeta para admirar e bastando apenas as suas palavras e a sua música para encontrarem conforto e inspiração. E para mim é aí que reside o verdadeiro significado e poder da arte, ou seja, o dar sem procurar receber nada em troca, tal o amor.
Já nos Estados Unidos, poderá ter havido uma altura em que algo falhou no trajecto de Rodriguez para que ele não fosse justamente integrado no circuito daqueles que mudaram aquele nosso mundo, mas ao ver este filme apercebemo-nos que Rodriguez não vive amargurado ou frustrado com o passado. Ele foi o artista que quis ser e aquilo que achava que podia ser. Aliás, a forma como é encarado o sucesso na África do Sul é sintomático da forma inocente como olha a sua arte e das escolhas que fez preferindo fazer parte da working class hero que Lennon disse, mas que Rodriguez fez.
Assumindo que os 60 americanos corresponderam a uma altura da história que foi propicia à formação de uma cultura popular mais genuína do que aquela que vivemos actualmente, o caso de Rodriguez vem dizer que nem tudo correu bem e que mesmo nessa altura existiram pessoas que por razões de exclusão ou preconceito não foram tidas em conta, tal como acontece nos dias de hoje. Também não deixa de ser interessante que, da mesma forma que a informação serve para promover uma cultura de mediocridade, a mesma informação serve também para salvar a cultura e transformar o trabalho anónimo num fenómeno planetário capaz de, neste caso em particular, dar a Rodriguez a referência que agora julgamos como merecida. E é aqui que o cinema entrou com este filme Searching for Sugar Man que, não sendo muito complexo na tentativa de explorar mais as razões pelas quais a super-estrela Rodriguez nunca chegou a nascer, ajudou a compreender que não foi por Rodriguez ter estado morto que deixou de viver.

junho 15, 2013

"Terrível palavra é um NON"


A cena inicial de Non ou a Vã Glória de Mandar é provavelmente uma das melhores sequências da história do cinema porque representa a verdade do tempo, do tempo imenso maior do que qualquer plano, tal as aspirações do povo lusitano cujo mar serviu para dar a ilusão de grandeza a um país limitado a uma pequenez que as fronteiras naturais quiseram obrigar. E Oliveira mostrou que a árvore vista de diferentes planos oferece sempre uma perspectiva diferente tal os momentos da nossa História. A árvore é pois um facto que se foi consumando ao longo do tempo e a nação foi-se consumando com ela e para ela.
País de Viriato ao "orgulhosamente sós", sós contra os romanos e contra o mundo, fundado na negação da civilização e que depois despertou para a missão messiânica de governo do mundo, NON não trata pois de traçar o retrato da pátria lusa como primeira nação da Europa à luz das conquistas e vitórias militares, mas através da obstinação que levou às batalhas perdidas e que resumem a tragédia do nosso destino. Destino que foi o de dar novos mundos ao mundo por mares nunca dantes navegados, mas que encerrou a tragédia no desastre de Alcácer-Quibir de onde nasceu o mito, o mito tornado verdade. Na reconstituição dessa história estão aqueles que lutariam também numa guerra perdida, séculos depois de se ter a utopia na mão e o mundo no mar, o colonialismo e a guerra do ultramar já eram os sinais da decadência de um Império que teve um nome, mas que nunca foi, o Quinto.
No final, um soldado morre e, vindo do mar nublado, assomou encoberto o desejado dia que deu ao país a esperança de um novo mundo português libertado do delírio imperialista que afinal só serviu para dar à Língua um estatuto de património, sendo no entanto dádiva que não apaga a humilhação da história. No final, foi Sebastião que tomou o corpo de abril, regressando à nação agora sem império e sem orgulho, para devolver a glória que nunca conheceu. Mas em 74, já longe do mar e dos deuses, a glória mais não era do que paz, paz e liberdade.
Nesse Abril revolucionário, poderá ter havido uma altura em que pensou-se que era chegada a altura de finalmente enterrar o nosso rei, aquele rei-mito e personificação da salvação nacional. E se o 25 de abril trouxe a salvação sobre a ditadura, aos dias de hoje continuamos a olhar para a árvore, já noutro plano e com outra perspectiva, e vemos que a paz e a liberdade não trouxeram por si só o bem estar que almejávamos. A verdade é que Portugal vê-se agora sem território e nem autonomia, ocupado pela lei financeira que parece perpetuar a tragédia do nosso destino que julgámos um dia ter terminado. E assim, cansados e desgastados por este jugo que parece já ter 1000 anos, continuamos à espera que se faça cumprir o desígnio português sem no entanto fazermos ideia do que somos e do que queremos ser.

junho 10, 2013

Efeitos Soderbergh

Quando Soderbergh apareceu em meados dos anos 2000 com Traffic e em seguida com o filme Ocean's Eleven, ficámos com aquela sensação de que um realizador diferente tinha surgido para se distinguir dos outros através de uma narrativa cheia de estilo e com um ritmo próprio acompanhado por boas escolhas sonoras. Se depois, a adaptação do filme original de Tarkovsky, Solyaris, ou a realização de duas sequelas de Ocean's, possam ser entendidas como opções algo ousadas ou discutíveis, parece-me que é a partir do momento em que Soderbergh faz da luta de Che Guevara em Cuba uma espécie de telenovela mexicana que as dúvidas quanto à sua originalidade podem começar a ser colocadas.
Pois em Che, cujo único bem traz a representação de Benicio Del Toro, Soderbergh começa a derivar por lugares comuns e superficialidades que até aqui, agora vejo eu, iam sendo disfarçadas pelo tal estilo e pelas boas bandas sonoras que marcavam o ritmo. E é também a partir desta telenovela, que Soderbergh parece querer marcar uma agenda esquerda em que reflecte alguns dos problemas que podem advir do mundo em crise, e para isso usa temas polémicos através de formas pouco convencionais, mas que no fundo e vendo bem as coisas, são revestidas por uma capa de juízo cliché sem profundidade. E Soderbergh marcou esta sua agenda com os filmes Confissões de uma Namorada de Serviço, cuja actriz principal é uma actriz pornográfica especialista em anal, ou Contágio, que teve a particularidade de ter tido na altura uma campanha de marketing gigantesca e em que o cartaz anunciava um grande conjunto de actores que a produção teve a audácia de ir matando desde muito cedo ao longo desse filme. Ou seja, muita forma e pouco conteúdo.
Num desvario a um determinado mindset de Soderbergh, o realizador fez um Magic Mike, que não consigo perceber, e o último Efeitos Secundários antes de uma mais do que exigida paragem sabática que ainda deixou Behind the Candelabra, que parece-me ser um daqueles filmes à boa pinta de Soderbergh. Mas à medida que vamos vendo o último Efeitos Secundários, apesar de toda a fragilidade que está implícita na demonstração de cada personagem, há algo de perturbador e real, principalmente em Mara. E à medida que o filme avança e em que vamos percebendo que o que está aqui em causa é uma trama em torno do lobby farmacêutico, cuja leitura de interesse se estende até ao 9/11 que é referenciado com todo o propósito no filme, que vemos que a agenda esquerda de Soderbergh está de volta em forma mais amadurecida. Mas, lamentavelmente, no final, Soderbergh fez questão de nos fazer lembrar da sua falta de ambição e coragem e opta por um caminho não largo, mas estreito e apenas focado no desfecho da vingança pessoal esquecendo tudo aquilo que o filme ia anunciando. Se há situação em que a palavra frustração se pode aplicar, este é um desses casos.